Havia três casas de iguais fachadas: uma porta e duas janelas, do lado direito da subida e lá no alto perto do Convento da Igreja dos Franciscanos. Todas três, bem como as demais construções desse lado da rua, davam para os fundos da borda de uma falésia morta, exibindo uma escarpa íngreme, mascarada pela erosão e esculpida na formação de barreiras, miolo estrutural de todos os morros de Olinda. Habitávamos na casa do meio.
Ao nos instalarmos nessa morada, no segundo semestre de 1912, meus pais começaram a observar em mim a manifestação das primeiras sequelas de uma possível lesão cerebral, decorrente da compressão craniana produzida pelo fórceps ao nascer. Eu apresentava, então, um sensível déficit de desenvolvimento muscular em todo meu lado esquerdo. Quando principiei a engatinhar, a perna e o braço esquerdos, sem firmeza, longe de ajudar, atrapalhavam minha locomoção. E se me punham de pé, só a perna direita tentava o equilíbrio do corpo sem conseguir ficar soltinho.
Assustados, meus pais levaram-me aos médicos, submeteram-me a tratamento e encontraram terapêutica milagrosa nos “banhos salgados”. Todas as manhãs, bem cedinho, meu pai descia comigo uma travessa bastante inclinada, em degraus espaçados, até a orla marítima. Lá, ele me botava para engatinhar e brincar ao alcance do lençol de espumas das ondas, deixando-me molhar bem com aquela água, dita, “iodada”. Todas as tardes, por sua vez, minha mãe mandava buscar um balde de água do mar e eu tomava banho salgado de bacia. Assim ou assado, a grande verdade é que, antes de completar dois anos, eu já andava com desembaraço e até corria.
A outra cura aconteceu na adolescência. Aos 15 anos de idade, vencida a puberdade sem maiores problemas, eu já era orgânica, mental e sexualmente um rapaz feito, mas faltava-me a estatura. A minha aparência física fazia-me passar por um menino de 12 anos e como tal, na época, ainda de calças curtas. O Pediatra Meira Lins examinou-me dos fios dos cabelos às plantas dos pés e em conversa com meu pai, receitou, apenas, um remédio. Nós deveríamos morar durante um ano inteiro em casa situada à beira mar, com a permissão e liberdade de demorar a maior parte do tempo possível na praia, tomando banhos de sol e de mar, correndo, jogando bola, chupando cajus, nadando, pescando sobre os arrecifes. Claro que segui a risca tão agradável medicamento e, no fim de quatro ou cinco meses, de agosto a fins de dezembro, eu consegui estrear, no Natal, as minhas primeiras calças compridas, medindo 1m14 de altura. Pra que mais?
Ainda, hoje, em consequência daquele fórceps, resta-me uma disfarçada atrofia de meus membros do lado esquerdo, mais finos, menos firmes e com potencial de menor força, bem como uma pronunciada escoliose óssea no tórax do lado do coração.
E quem sabe se a fragilidade e a propensão aos descolamentos de retina, condenando-me a atual perda da visão, não resultaram daquela compressão cerebral?
Pena que as praias e o mar de Olinda não sirvam para solucionar o problema dos meus olhos cegos...
A partir de 1914, as minhas reminiscências vão se amiudando e se tornando mais precisas. Uma imagem nítida de outrora era o panorama proporcionado pelas três janelas que se abriam de nossa sala de jantar. Por uma delas, gostava de bisbilhotar de olho comprido o nosso ladeiroso quintal, cheio de mato nativo, inacessível às minhas travessuras. As outras me mostravam o mar imenso, o coqueiral da praia e o casario da Rua do Sol e adjacências.
Por aqueles mirantes, aprendi a distinguir, com meu pai, os paquetes de passageiros e os navios cargueiros, aproximando-se ou distanciando-se do Porto de Recife. E distraía-me com o desfile das barcaças de dois ou três mastros, que faziam o transporte de pequena cabotagem entre os lugarejos ao longo do litoral pernambucano.
Uma visão que guardei na memória e a transferi, da janela de sua cela, aos olhos do bom frade franciscano, o personagem principal do conto “Meus Três Namoros”, de meu livro ESTÓRIAS DA VIDA.
Defronte de lá de casa, junto à casinha de Sinhá Rosa, lavadeira, erguia-se uma enorme e frondosa mangueira, à sombra da qual meu pai costumava armar sua espreguiçadeira e ficar lendo, enquanto me vigiava o brinquedo ao seu redor. Entre outras lembranças, evoco as viagens nas maxambombas de Olinda, logo substituídas pelo bonde elétrico inaugurado naqueles 1914.
No entanto, a recordação mais precisa entre as minhas reminiscências mais remotas focaliza o dia 30 de julho de 1914. A nossa casa cheia de parentes e vizinhos amigos para festejar o meu terceiro aniversário natalício e o batizado de Hoel. Como se repetiu ao longo de muitos anos em semelhantes reuniões festivas, a nossa mesa da sala de jantar estava coberta por um atoalhado branco acetinado e chamalotado, onde se arrumavam bandejas com bons-bocados, compoteiras – uma com baba-de-moça e outra com doce de goiaba em calda-, pudins de coco e de pão, com passas, e o rolo todo enfeitado em volta do papel de seda encrespado. Na época, não se usava ainda o bolo de aniversário com velinhas para serem apagadas ao canto importado do “Parabéns pra você”... À tardinha, fomos todos para a Igreja de São Francisco, onde estranhamente, vivi meu drama.
Desde o nascimento, comecei a me afeiçoar ao irmãozinho. Sentimentos de zelo, cuidado e proteção eram frutos de um crescente benquerer para aquele, que, na verdade, foi o meu único e inseparável companheiro das trelas, de brinquedos, de jogos, de estudos, de sonhos na adolescência, de confidências de namoricos, de luta pelo ganha-pão e de responsabilidades para com as nossas famílias até a sua prematura morte, aos quase 49 anos de vida.
Quando criança, de tanto ouvir conversas de meus pais, ainda acabrunhados, sobre a doença, óbito e sepultamento do primeiro filho, a quem iam levar todos os meses flores no cemitério, apavorava-me a idéia de vir a perder meu maninho. De modo que, na Igreja, embora contente por vestir o meu conjunto de malha vermelho com gola branca - as cores do Coração de Jesus, a quem fui consagrado - ao ver Hoel, nos braços de Lídia, sua madrinha de apresentação e, às voltas, com o Frade que lhe desnudava a cabecinha para lhe derramar a água batismal, não me contive e “botei a boca no trombone”. Levaram-me para a porta do templo, procuraram me distrair, mas só me tranquilizei ao vê-lo de retorno ao lar, em seu bercinho, dormindo inconscientemente o seu primeiro sono de cristão.
Em abril de 1915, iniciamos uma temporada de três meses de vilegiatura em casa alugada, na Rua da Feira, em Caruaru. Guardo algumas imagens daquele ano de grande seca nordestina. O Ipojuca com o leito seco, as hordas de retirantes atravessando a cidade em direção aos brejos... Cenas que procurei reconstituir no meu ZÉ DO FOGUETE.
Em outubro de 1915, mudamo-nos, em Olinda, para a Rua de São Bento, 284. Típica casa de fachada cor-de-rosa, porta e postigos e duas janelas de frente. Muito próxima da esquina da Rua 15 de Novembro, quase confronte à descida pela rua da cadeia. Era uma casa mais espaçosa, onde demoramos até fins de 1919.
No interior do imóvel, amplas acomodações representadas por duas imensas salas, quatro grandes quartos internos, “hall” de entrada, comprido corredor e dependências numa sequência de copa, cozinha, quarto de empregadas, cisterna e mais dois quartos - o do banheiro e o último o da privada. Piso todo em toscos tijolos de barro quadrados, altas paredes caiadas de branco e, excetuando-se a sala de visitas, tudo o mais com o teto à telha-vã.
O mobiliário ainda era o mesmo do lar montado por meu pai ao se casar. Os ambientes confinados por aquelas salas, quartos e dependências secundárias da nossa residência olindense em fins da década dos anos 10, são testemunhas mudas de nossa doce e ingênua convivência familiar. Imagens que ficaram para sempre gravadas com molduras de saudades em minha lembrança.
Nunca pude esquecer, por exemplo, o estranho ar cerimonioso e solene de nossa sala de visitas, a única peça da casa de teto forrado e paredes pintadas a óleo azul clarinho. Sempre limpa e arrumada, área proibida às nossas trelas, a sala só era aberta e usada para recepção de raras visitas e para reuniões de parentes em festinhas de aniversários natalícios. Lá dentro, uma autêntica mobília de junco austríaca, com assentos e encostos de palhinha, constituída de sofá, duas cadeiras de braço e doze de guarnição. O sofá ficava entre um tapete felpudo e vermelho aos pés e um espelho de cristal no alto da parede de detrás. Ali, pendurados nas paredes, em lugares nobres, os grandes retratos a desenho e a óleo de Vovô Sette, Papai Luna e Mamãe Emília dentro de bonitas molduras douradas. Nos dois cantos da sala, porta bibelôs com biscuit de estimação. E bem no centro, uma mesinha de tampo pentagonal, encimada por uma caixa envidraçada contendo antigo veleiro de guerra esculpido em osso. Sobre essa mesinha, por sinal, durante o período natalino, minha mãe armava nossa lapinha com ramos e folhas de pitangueiras para abrigar, deitadinho, o nosso Menino Deus do Oratório.