Nasci precisamente às três horas e sete minutos da madrugada do dia 30 de julho de 1911. Em casa de minha avó materna, minha Dindinha Francisca Olímpia da Silva Maia, que residia com seu filho mais velho e família, tio Heitor da Silva Maia. Eles viviam instalados em um sobradinho da Rua da Aurora, 25, depois 113. Sou, assim, pernambucano de uma das ruas mais recifenses do Recife. À beira do Capibaribe, no trecho situado entre as Pontes da Boa Vista e a antiga das maxambombas da Linha Principal. Onde se encontra a atual Ponte Duarte Coelho.
Havia uma amizade e um bem querer muito grande entre a minha Dindinha e meu pai. Ela lhe dispensava um tratamento de quase filho e, à minha mãe, não disfarçava o apego zeloso à filha caçula. Acontece que as famílias de meus avôs paternos e maternos sempre foram amigas. Visitavam-se amiúde e encontravam-se nas demoradas temporadas européias. Certa vez demoraram-se por muitos meses na cidade do Porto, em Portugal, ficando vovó Sette, esposa e filho hospedados no Hotel Universal, na Praça da Batalha e o vovô Bruno Maia, em sobrado alugado, ali, pertinho, no começo da Rua Santo Idelfonso, bem defronte do oitão da Igreja.
Durante esse tempo, meu pai, menino, acostumou-se a ir passar às quintas-feiras em casa de seus amigos Oscar e Maria Laura para brincarem de touradas, assim nos contavam. O namoro entre meus pais simplesmente aconteceu, inconscientemente, da infância à adolescência. Ambos com 15 anos de idade, quando meu pai deixou o Rio de Janeiro para vir morar no Recife. Namoro e noivado, logo, abençoados pelas mães de cada um, antecedendo à perfeita união conjugal.
Sendo assim, todas as vezes que o meu tio Heitor e família se ausentavam a minha família se mudava para fazer companhia a minha Dindinha. Mas daquela vez, havia mais um motivo para meus pais e meu irmão estarem por lá: o meu nascimento.
Na véspera do meu nascimento, sábado 29, quase ao anoitecer, o meu tio Heitor e seus familiares regressaram de Caruaru e encontraram a casa no alvoroço dos preparativos do iminente evento. Imagino que as atividades de minha Dindinha e da assistente, D. Antônia Wright, em providenciar tudo quanto fosse possível para estar à mão no momento preciso, vieram se juntar à tagarelice dos recém-chegados de uma temporada de vilegiatura. O cheiro do franguinho, na cozinha, a se transformar em caldo de galinha e o aroma da alfazema a defumar a roupinha do próximo recém nascido passaram a se misturar aos odores da carne de sol, da linguiça e das frutas maduras compradas de manhã na feira caruaruense.
O problema obstétrico de minha mãe consistia na falta de contração para expulsão do feto. Ela sofria, normalmente e com muitas dores, o processo de dilatação do colo do útero, mas, como as contrações não prosseguiam, urgia a ação dos médicos. Hoje, uma cesariana resolveria facilmente o caso. Contudo, naqueles tempos, tal operação tinha igual consequência a que resultou da ordem do imperador romano de intervenção em sua própria mãe.
Em todos os três partos, minha mãe era, então, cloroformizada sobre uma mesa e os cirurgiões-parteiros, como se dizia, Alfredo Costa e Bandeira Filho, extraiam a criança por meio de fórceps. No meu caso específico, por ter nascido um pouco mais desenvolvido, fisicamente, que meus dois outros irmãos, e, talvez, por não haver descido, convenientemente, no ventre materno, foi necessário a aplicação do chamado fórceps alto. Aliás, em duas tentativas. Na primeira, um dos tentáculos do instrumento cirúrgico resvalou, ferindo a epiderme da face esquerda. Com uma compressão mais forte, entre a fronte direita e a mandíbula esquerda, fui arrancado a muque das entranhas de minha querida e insuperável mãe.
Nasci, assim, trazendo o rosto ensanguentado, as narinas obstruídas, aparentemente natimorto e, por isso mesmo, colocado sobre a fria pedra de mármore de um lavatório. Providencialmente, a minha Dindinha entrou no quarto e constatando que eu me mexia, alertou os médicos, que se preocupavam em cuidar de minha mãe em perigo de vida. A custo, Dr. Bandeira Filho e a assistente D. Antônia desobstruíram as minhas narinas e boca, ressuscitaram-me e fizeram-me chorar num vagido que soou quase como um gemido. E esse gemido se repetiu madrugada afora, de quando em quando, mesmo depois do ritual do banho de bacia com água perfumada e a presença de uma meia libra esterlina de ouro, para me augurar fortuna. Depois, encueirado, vestido com camisinha de pagão, toquinha e sapatinhos de lã fui acomodado no berço e atravessei o resto da madrugada, o dia todo e a noite de domingo. Somente na manhã de segunda-feira, 31, o Dr. Alfredo Costa, em sua visita matinal à paciente, depois de me examinar, minuciosamente, parabenizou os meus pais por haver ganhado o segundo filho.
Os traumas de tão penoso nascimento produziram-me uma lesão cerebral que atrofiou e retardou a firmeza e o pleno movimento dos membros do lado esquerdo, como também foi responsável por uma escoliose óssea da face anterior externa da caixa torácica. Em consequência, só vim fazer “finca pé” e andar com quase dois anos de idade e isso mesmo graças à terapêutica a que me submeti na Clínica de Dr. Octávio de Freitas e aos “banhos salgados” tomados na Praia de São Francisco, em Olinda, antes do nascer do sol. Assunto que me ocuparei mais adiante.