Os anos passam. O tempo parece não obedecer ao limite dos oitenta por hora. Voa... Mal entra janeiro, vem o carnaval, faz-se penitência na Semana Santa, decorrem animados os festejos juninos, assiste-se ao desfile militar no Dia da Pátria, aproxima-se o Natal, anuncia-se o Ano Novo e com ele, outro janeiro...
Tudo vertiginosamente.
Fatos de ontem e de anteontem estão a comemorar os seus jubileus de prata e ouro. Os entes queridos do quotidiano de outrora, hoje, no silêncio de seus túmulos participam, nítidos e atuantes, de meu pensamento. Avós, tios, sogros, pais e irmão já foram. Primos, cunhados, amigos, colegas contemporâneos continuam a minguar no rol dos vivos.
Conjugo o verbo renunciar em todos os tempos e modos. Não só em relação às atividades profissionais, como às preferências no mundo culinário, ao desembaraço dos movimentos e, gradualmente, aos prazeres do sexo. Os castelos e planos não realizados até agora, vão para o arquivo. A visão se reduz a um olho só e, nesse mesmo, a menos de dez por cento. E, em consequência dessa quase cegueira, a contingência de duas aposentadorias e um adeus para sempre às estrelas do céu, às paisagens geográficas e aos traços fisionômicos e detalhes das formas e de tudo ao meu redor.
Sinto uma crescente sensação de isolamento, agravada por meu temperamento esquivo. Diria melhor de insulação. E, mais a mais, uma atração pelo refúgio do meu lar, do meu gabinete de trabalho, desta minha máquina de escrever.
Não obstante a tarimba dos meus quarenta e dois anos de magistério, não me é fácil um contato de compreensão mútua com as gerações jovens. Estão a nos separar novos conceitos, novos padrões morais, novos hábitos, novos modos de pensar e de sentir. Meu pai já observava esse fenômeno, em suas memórias escritas, há trinta anos, e chamava de “sabedoria da velhice” ao reconhecimento dessa evidência.
Felizmente, verifico existir, em plena flor da idade, cá dentro de mim mesmo, o espírito que não envelhece e, muito menos, morre. Um espírito vivo, lúcido, com imenso potencial de amar, de criar e até de brincar.
De brincar, sim, e por que não? Para minha sensibilidade, brincar foi o maior e melhor entretenimento que conheci em toda a minha existência (de sessenta e sete anos). Tivesse ainda o irmão como parceiro e como gostaria de jogar as nossas disputadas partidas de “tampebol”, o futebol de tampinhas de garrafas que inventamos muito diferente do “celotex”. Não fosse cego e decerto ainda empinaria um bonito gamelo, usando “cabinho”, com longa cauda em tiras de pano, “roncador” e “ró-cega”, todo alvirrubro, as cores do meu Náutico, dia a dia mais querido. E não será um delicioso brinquedo, este, o de escrever, o de concretizar a inspiração no papel, através de palavras, frases, orações e parágrafos?
Ante as limitações impostas pelo envelhecer do corpo, impossibilitando-me o exercício de outras atividades, recorro à fecundidade do pensamento e à vocação literária herdada de meu pai. Não faço mais que voltar às raízes. Hoje, reencontro-me com as belas letras.
Os primeiros capítulos de um romance são retirados do “museu” de minhas recordações e a obra é refundida, escrita, concluída. Uma série de então encontra mérito no que escrevi e senti. A elaboração deste conto começou pelo título. “Envelhecer...”.
Pus o papel na máquina e pretendia contar as reações de uma alma jovem engaiolada num corpo envelhecido e praticamente inválido. Decidi-me pela narrativa na primeira pessoa e foi o meu erro. Identifiquei-me de tal maneira com o personagem central que agora não cabe mais aqui o término antes planejado.
Releio tudo quanto já está datilografado em busca de um fecho inesperado e expressivo, como manda o figurino, e verifico que não fiz ficção. O eu do conto, sou eu mesmo, numa página íntima, autobiográfica. Não se trata de uma entre as quatorze do ESTÓRIAS DA VIDA. Nem chega a ser uma estória minha, pois, na verdade, pertence à Minha História. E eu ainda estou vivo...