ROSAS VERMELHAS (1991)

Waldemar Lopes

“Um Geógrafo Ficcionista”

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Um caso dos mais expressivos - e até comovente, por suas peculiaridades individuais - é o dessa excelente figura humana, a quem tanto admiramos e queremos Hilton Sette, membro dos mais ilustres e respeitados da Casa de Carneiro Vilela. Filho de um escritor da alta categoria de Mário Sette, cuja obra ficcional de caráter regionalista e trabalhos de pesquisa histórico-social tiveram repercussão no país inteiro, Hilton preferiu trilhar outros caminhos, pondo os recursos de sua beta inteligência inteiramente a serviço da ciência geográfica. Tanto no magistério como em numerosos estudos publicados, é da maior importância a sua contribuição nesse campo, identificado que se mostrou sempre com as novas correntes de sua ciência, dominando-lhe os conceitos teóricos e as aplicações práticas, segundo uma ampla visão modernizadora.

Posso fazer-lhe essa referência com inteira justiça, embora tenha vivido quase meio século fora de Pernambuco, pois guardo, ainda hoje, trabalhos seus, com preciosos subsídios sobre as diferentes regiões naturais do Estado e suas características sócio-econômicas. Sem sair da velha província, ele soube ajustar-se muito bem às modernas tendências da pesquisa geográfica, de que o ilustre professor Deffontaines foi um dos grandes animadores, junto às novas gerações de geógrafos brasileiros, na década de 40.

Privado da visão, numa hora amarga em que, aos espíritos menos fortes, a inércia e o recolhimento se imporiam inexoravelmente, pôde, ainda assim, Hilton Sette oferecer-nos um extraordinário exemplo de vitalidade intelectual, de fortaleza do ânimo criador, iniciando, a partir de 1979, uma carreira literária a que não tem faltado a melhor fortuna crítica. E note-se: nessa nova fase de aplicação das forças do espírito, como "escritor literário", mantém atenta e vigilante a consciência de sua formação científica, em perfeita harmonia com os impulsos e devaneios da criação artística arbitrária e libertadora por natureza.

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Hilton Sette não quis fazer uso desses excessos de licença. Preferiu ater-se a modelos mais sóbrios e disciplinados, segundo o velho estilo, já distinguidos pela preferência dos leitores e a consagração da chamada crítica impressionista. Entre Maupassant e Mansfield, fica seguramente com o primeiro; idem entre Machado e Borges. Terá tido presente - quem sabe - a sabedoria da esplêndida "boutade": "Em literatura, como nas guerras, as vanguardas sempre morrem primeiro".

Um crítico mais sofisticado, em dia com o que se tem feito, nos últimos tempos, em matéria de técnica do conto, poderá acusar Hilton Sette de excessivamente fiel a modelos que, muitas vezes, lembram até a estética literária de Artur Azevedo e de outros escritores do passado. Cumpre-nos, porém, ter em vista que, em nenhuma área da aventura humana, é mais necessário o pleno exercício da liberdade de opção do que nessa da criação artística. A cada criador cabe escolher os seus caminhos e percorrê-los livremente, desatento às sinalizações convencionais. Só assim marcara sua presença e deixará seu testemunho. Sem isso o patrimônio literário e artístico da humanidade sofreria inaceitáveis restrições; tornar-se-ia monótono e repetitivo, falso e limitado.

Os contos de Hilton Sette reunidos neste livro distinguem-se, como tantos outros de sua autoria, pela extrema simplicidade, quanto à trama ficcional, a urdidura temática. São fragmentos do quotidiano, segmentos do dia-a-dia, palpitantes de vida e autenticidade. Os enredos que dinamizam sua estrutura não são nunca abstrações de uma realidade imaginada ou construída pelo poder criativo do autor. São projeções do ambiente social de que ele é parte, e sobre o qual aplica um fino poder de observação. Tão vivas e reais quanto às tramas das histórias escritas por Hilton Sette são a psicologia dos personagens e os perfis de seus caracteres, sem falar nas precisas indicações que bem refletem o meio fisiográfico, as paisagens que emolduram as cenas descritas. O geógrafo e o ficcionista dão-se as mãos, e ambos se saem muito bem.

Vale a pena assinalar: jogando com as múltiplas situações em que se pode ver envolvida a criatura humana, no difícil exercício da vida, o autor mantém-se atento, entretanto, às realidades do ambiente social em que se projeta sua capacidade de observação e criação. Talvez se pudesse ver em seus contos puras aplicações da geografia etnológica ao campo da ficção literária.

Os episódios narrados não são, necessariamente, apenas típicos da região em que se situam; mas a sua universalidade humana está fortemente assinalada por certa marca regionalista, presente nas almas, nas atitudes, na psicologia dos personagens, o que imprime aos contos uma característica essencialmente pernambucana ou nordestina. Isto, aliás, não ocorre apenas quanto à feição psicológica dos personagens ou à teia de intrigas em que se possa basear o conteúdo das narrativas. Também está presente nos recursos da linguagem simples e fluente, bastante fiel a modelos de expressão oral representativos das épocas a que as histórias correspondem. É esse um traço dominante na construção literária de Hilton Sette: a identificação com os modelos orais dos tempos em que acontecem os episódios narrados, inclusive quanto a certos modismos verbais, cuja fixação nos textos é sempre útil, até como registro semântico para indicação de época.

Que deve um contista desejar de mais importante, como prêmio ao esforço de criação? Manter vivo o interesse do leitor, tê-Io preso ao desenvolvimento da narrativa, criar situações de "suspense" que dissolvam em soluções de surpresa a tensão provocada pela trama do enredo. De forma simples e clara, é isto que Hilton Sette consegue na maioria dos seus contos, se não em todos eles, com os imprevistos de que enriquece a contextura das narrações e a acuidade inventiva dos remates que lhes imprime, quase sempre imprevistos e insólitos.

As breves histórias que se enfeixam neste “Rosas Vermelhas” apresentam, em sua quase totalidade, esses atributos peculiares, que asseguram ao autor uma posição de inegável relevo na ficção pernambucana contemporânea. Lucilo Varejão Filho, um dos mais argutos analistas da obra ficcional de Hilton Sette, já assinalou, com precisão, que, "se d' aqui a cem ou duzentos anos, quiser alguém conhecer a terra recifense e a gente que aí vivia, por volta dos meados do nosso século, será nos romances de Hilton Sette que irá encontrar os mais ricos dados”.

Bastará acrescentar que nem só nos romances; também nos contos.

Boa Viagem, Recife, janeiro de 1991.

Fonte: Prefácio de Waldemar Lopes in SETTE, Hilton. Rosas Vermelhas. Contos. Recife: Edição da Academia Pernambucana de Letras, 1991.